terça-feira, 1 de outubro de 2013

CARTA ABERTA AO FANTÁSTICO E AO DR. DRÁUZIO VARELLA SOBRE A SÉRIE “AUTISMO: UNIVERSO PARTICULAR”


Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública
Carta aberta ao Fantástico e ao Dr. Dráuzio Varella sobre a série Autismo: Universo Particular
Nós, integrantes do Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública (MPASP), que reúne profissionais (psiquiatras, psicólogos,  pediatras, neurologistas, psicanalistas, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, acompanhantes terapêuticos, psicopedagogos) que trabalham no campo da saúde mental inseridos em diversas instituições clínicas e acadêmicas disseminadas pelo Brasil, na rede pública e privada, assistimos a série “Autismo: Universo Particular”, apresentada pelo dr. Dráuzio Varella no Fantástico, e vimos, por meio desta, apontar o que consideramos como  faltas éticas e desconhecimentos científicos cometidos pelo programa.
Buscamos assim contribuir para com o esclarecimento à população, favorecendo que  programas jornalísticos e de divulgação científica possam trazer informações sérias e efetivas sobre o autismo e seu tratamento, uma vez que se trata de um tema da maior relevância para a saúde pública atual.
Seguem alguns pontos a destacar:
  1. Da forma como foi conduzida, a série praticamente posiciona-se contra o SUS; ao dizer que “nada funciona”, resulta em difamação e em uma demonstração de total desconhecimento das inúmeras experiências de sucesso no tratamento de pessoas com autismo nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e outros órgãos da rede pública de saúde e  nas instituições a ele conveniadas  que têm produzido relevantes  trabalhos nas terapias de autismo  no Brasil.
Isso acontece em um momento crucial para o tratamento das pessoas com autismo e seus familiares, já que estão sendo definidas políticas públicas fundamentais destinadas a nortear o tratamento e o diagnóstico nos equipamentos do SUS (como as lançadas no documento Linha de Cuidado para a Atenção das Pessoas com Transtorno do Espectro Autista e suas famílias na Rede de Atenção Psicossocial do Sistema Único de Saúde/SUS – Ministério da Saúde, abril, 2013),
  1. A série apresentou uma visão reducionista do autismo, especialmente quanto ao seu diagnóstico e tratamento, ignorando as  contribuições clínicas existentes, entre elas, as advindas da concepção psicanalítica em equipe interdisciplinar desenvolvidas há mais de  70 anos.
  1. A série  demonstrou desconhecimento acerca  dos relevantes efeitos clínicos da detecção e intervenção precoce ao apresentar o autismo como “incurável”. Os progressos científicos produzidos interdisciplinarmente no campo da primeira infância no diálogo entre psicanálise e neurociência têm revelado que  os primeiros meses de vida se caracterizam por uma extrema plasticidade neuronal, configurando possibilidades de recuperação orgânica. Os progressos científicos demonstram também que não nascemos com nosso organismo pronto, já que tanto a formação da interconexão neuronal quanto a manifestação de nossa carga genética dependem de fatores ambientais (epigenéticos), entre eles a relação com as outras pessoas  como fator fundamental para os humanos.
  2. A série é questionável no que se refere à exposição das crianças. Para um autista, esse nível de invasão recrudesce sua posição de exclusão, e nada justifica tal atitude.
É lamentável que um programa tão assistido e com um tema que exige tanto esclarecimento público não tenha sido capaz de apresentar  os aspectos básicos para a  abordagem de um problema de saúde premente e complexo como o autismo. Ao privar o telespectador de informações valiosas e necessárias – e conduzi-lo a uma visão comprometida e empobrecedora –, o programa produz ainda mais sofrimento nas famílias.
Sobre o diagnóstico precoce
A importância do diagnóstico precoce foi colocada de maneira distorcida pelo programa. Não há dúvidas em relação à diferença que o diagnóstico precoce pode produzir no tratamento, favorecendo-o, e toda a comunidade científica está de acordo em relação a isso. Mas considerar, como foi feito no programa, que nos Estados Unidos o estado da arte está mais evoluído porque o diagnóstico de autismo é realizado antes dos três anos é um desserviço. Documento produzido pelo Ministério da Saúde em abril deste ano – Linha de Cuidado para a Atenção das Pessoas com Transtorno do Espectro Autista e suas famílias na Rede de Atenção Psicossocial do Sistema Único de Saúde/SUS – e que segue recomendação da Organização Mundial de Saúde, afirma (pág. 50): “Por apresentarem mais sensibilidade do que especificidade é oficialmente indicado que o diagnóstico definitivo de Transtorno do Espectro Autista (TEA) seja fechado a partir dos três anos, o que não desfaz o interesse da avaliação e da intervenção o mais precoce possível, para minimizar o comprometimento global da criança (Bursztejn et al, 2007, 2009; Shanti, 2008, Braten, 1988, Lotter, 1996)”. Antes dessa idade não se deve fechar o diagnóstico, pois ainda se trata de um bebê em pleno processo de constituição.
Na página 54, o mesmo documento  afirma: “Embora os primeiros sinais de Transtornos do Espectro do Autismo se manifestem antes dos três anos, é a partir dessa idade que um diagnóstico seguro e preciso pode ser feito, pois os riscos de uma identificação equivocada (o chamado falso-positivo) são menores.” Até lá, trabalha-se com critérios cientificamente comprovados (por pesquisas referendadas e validadas no circuito acadêmico) de Risco Psíquico para o Desenvolvimento e Sofrimento.
Promover e propagandear em um programa televisivo de cunho jornalístico o diagnóstico fechado de uma patologia antes do tempo recomendado pode ter o efeito de que se deixe de investir em uma possibilidade de mudança. Essa é uma postura irresponsável por produzir efeitos iatrogênicos, para bebês e crianças que ainda estão em pleno processo de constituição e que, portanto, não têm um destino definido, levando ao risco de produzir uma epidemia de autismo
Trabalho clínico  interdisciplinar de referencial psicanalítico
Outro aspecto que ficou muito aquém do desejável foi a necessidade de uma discussão interdisciplinar dos casos e a consideração da multiplicidade de fatores correlacionados ao autismo que não se limitam a aspectos  orgânicos (de genética, lesões ou deficiências), levando o telespectador  a uma visão reducionista  dando a entender  que no autismo haveria uma única causa em jogo e uma única forma de tratamento:  a terapia comportamental, como caminho autossuficiente.
Para tratar de crianças e adultos com autismo, não basta descrever que observam o mundo de forma fragmentada; é preciso dizer como é possível ajudá-los a encontrar saídas para esse estado. Tentar “ensinar” sentimentos, como observamos na série, também não resolve. É preciso ajudar o paciente a fazer uso das palavras a fim de representar seus afetos para poder  compartilhá-los com as  outras pessoas.
O trabalho clínico interdisciplinar de referencial psicanalítico abre inúmeras possibilidades para que cada pessoa com autismo possa construir laços sociais, partilhar a celebração de viver e contribuir para a sociedade. Também permite que os pais, muitas vezes desalentados pelo isolamento de seus filhos, possam ampliar a partir das intervençoes terapêuticas os momentos de troca, contato e reconhecimento mútuo. Favorece o processo de crescimento, desenvolvimento e constituição psíquica do filho e possibilita que as aquisições de linguagem, aprendizagem e psicomotricidade sejam efetivas apropriações do filho com as quais ele possa circular socialmente (na familia ampliada, na escola, na cidade), não de um modo simplesmente adaptativo, mas guiado fundamentalmente pelos seus interesses singulares. Quando realizado com bebês, , permite intervir a tempo, reduzindo enormemente e, em alguns casos, possibilitando a  remissão de traços de evitação na relação com o outro.
Questão educacional
No que tange à educação e escolarização, os integrantes do MPASP, a partir de inúmeras experiências clínicas de inclusão bem-sucedidas, ressaltam a importância de propiciar, sempre que for possível e benéfico para a criança, sua inclusão nas escolas regulares, ou seja, o diagnóstico de autismo não deve configurar per se indicação de escola especial, sob o risco de incorrer numa visão segregacionista.
Uma chance perdida
Pelo exposto acima, o Movimento Psicanálise Autismo e Saúde Pública (MPASP), do qual fazem parte cerca de 500 profissionais que atuam em mais de 100 instituições nacionais (públicas, privadas e não governamentais), considera que a série Autismo: Universo Particular foi um desserviço, uma chance perdida de alcançar maciçamente o público leigo com informação de qualidade.
Mais lamentavel ainda é que a produção desse programa tenha ignorado  essas informações enviadas pelo MPASP, enquanto o programa ia ao ar, dispostos que estávamos e estamos a colaborar com a informação nesse âmbito e ampliar a visão reducionista exposta pelo programa.
O MPASP se coloca à disposição dos meios de comunicação para apresentar  caminhos possíveis de tratamento  que não se restringem a treinamentos e  possibilitam ampliar e viabilizar os modos singulares de ser das pessoas com autismo.
Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública/MPASP

domingo, 18 de agosto de 2013

Difícil não ficar deprimido!

Entrevista do psicanalista Eric Laurent


Eric Laurent é um dos mais famosos psicanalistas do mundo e concedeu essa entrevista que foi publicada na revista Quatro, número 93, em junho de 2008. Ela não está disponível na internet em nenhum idioma e muito menos existe alguma outra tradução, mas segue o link para quem quiser comprar o original:

Nela, Laurent fala sobre a depressão e suas idiossincrasias; desde a imprecisão diagnóstica até o excesso de medicação, passando também por algumas questões históricas.

A entrevista repercutiu bastante na França e a pedido de uma professora, quando eu ainda me orientava pela psicanálise, traduzi a entrevista do francês - como já fiz com vários outros materiais psicanalíticos que não tinham tradução. Compartilho ela agora com vocês, lembrando que as opiniões expressas na entrevistas não representam necessariamente as minhas opiniões sobre o assunto.





Difícil não ficar deprimido!

Eric Laurent
Tradução: Pedro Sampaio

Um medo novo

- Você, doutor, acredita que nós vivemos em uma sociedade marcada, de modo geral, por uma forte depressão?

- Estou de acordo com isso, e é sabido por todos que isso é verdadeiro. Falar sobre depressão requer uma interpretação extensa que engloba todos os diferentes tipos de depressões. É, por conseguinte, difícil não seresdeprimido! A tal ponto que isso suscita grandes debates no mundo da clínica psiquiátrica para saber – a partir do momento que um sofrimento golpeia 25% da população - se devemos conceber diferentemente a noção de doença. Isso vai desde o homem vítima de estados de tristeza bastante comuns, até justamente ao paciente que preocupa, como pode ser o melancólico profundo, que é, indubitavelmente, vítima de uma doença. De fato, ao longo de toda uma vida, é muito provável que passemos por um episódio depressivo. Abordar em todos os casos a coisa em termos dedepressão situa e põe a justificação de um tratamento como se ele ocorresse a partir de uma doença. Essa é agora uma crença muito difundida perante a qual a população encontra uma nova angústia, sob a forma de uma pergunta: "Vou me deprimir? O que é que poderia impedir-me disso?"

- É verdade que é uma pergunta desagradável…

-… que se complementa de outra: "Que fareis quando ela vier?” Ao mesmo tempo, anuncia-nos a boa notícia de que há medicamentos que remediam esta depressão.


Nos dias de hoje, o corpo máquina

- A respeito dos medicamentos, é verdade que atualmente, na Europa, pode-se prescrever Prozac ao menor de 18 anos?

- Na Europa, tudo é complicado. Tudo é regulamentado. O problema dos antidepressivos para os adolescentes começou nos Estados Unidos, onde têm tendência a prescrever de maneira muito ampla. A proibição, que é mantida há muito tempo, de prescrever às crianças não se revelou uma barreira suficiente.

Para começar, os americanos têm prescrito aos adolescentes de maneira massiva para problemas de suicídio. Acontece que o efeito produzido pela liberação do peso da depressão, da inércia da tristeza, pode provocar o risco de uma reação oposta. Daí a importância de prestar atenção ao fato que não é suficiente a prescrição de antidepressivos aos adolescentes para que voltem à normalidade. A prescrição não provinha da necessidade de ocupar-se deles, sobretudo no início do tratamento. Daí a recomendação de acompanhar a medicação de uma psicoterapia. As perguntas puseram-se, por conseguinte em muitos países: “É necessário prescrever? Por quanto tempo e como?”

Houve resultados contraditórios. Aos Estados Unidos emergiram as primeiras advertências aos utilizadores que necessitam, por exemplo, de colocar sobre a embalagem dos frascos um anúncio que o medicamento podia ser perigoso. Assim, chegou-se ao impasse no qual, de um lado, tinha-se o medicamento miraculoso contra a depressão, mas, ao mesmo tempo, reencontrava-se a obrigação de advertir que este medicamento poderia ser perigoso.

Mais profundamente, estes paradoxos retornam às aporias da sociedade técnica que diz: “Considerem-os como máquinas. Se são tristes, é porque o vosso nível de serotonina não é suficientemente elevado. Se corrige-o, melhorará!” Atuam considerando o corpo como um automóvel! Quando algo vai mal, procura-se as peças de substituição. Tornem-nos equações! Todos os progressos da biologia permitem assegurar-nos que a causa da nossa tristeza existencial depende da serotonina.


Ontem, a bucha de canhão

- Indubitavelmente, o olhar sobre o corpo humano tem alterado muito. Pense um pouco o que isso significava um século atrás!

- Evidentemente! Há um século, pelo contrário, o foco era posto sobre o vitalismo na biologia. O que não impede que tenha sido, no entanto, um discurso absolutamente compatível com os grandes talhos europeus das duas guerras mundiais nas quais haviam muitos mortos. O olhar sobre o corpo era diferente. Não considerava como uma máquina, mas como uma individualidade susceptível de destruição pela guerra industrial. Aquilo conduziu finalmente à Ia Shoah que, na Europa, golpeou terrivelmente e que deixou um vestígio ainda mais brutal que o talho - repito o termo - da Grande Guerra de 1914, em que toda uma geração perdeu a vida.

- Terrível guerra de trincheiras…

- Os jovens foram enviados à morte e aquilo teve sem dúvida efeitos depressivos para a geração seguinte que tentou recuperar um pouco de vitalidade através do que resultou em certos movimentos, como surrealismo, a arte moderna… Os anos 20 foram uma tentativa de recuperar um pouco de vitalidade após as matanças.
O corpo, não mais “bucha de canhão”, mas “corpos máquina”, tem por consequência a permissão de sonharmos a partir de um ponto de vista técnico sobre o que é a vida e o mundo.


A sociedade da adição

- Convenhamos que o conceito “de corpos máquina” é antes triste. Pensam que a droga pode ser uma consequência desta concepção?

- Digamos antes que a droga poderia ser uma espécie de ironia terrível de onde Karl Marx já intuiu. Marx antecipou aquilo, na famosa Exposição Universal de 1851 ao Cristal Palace, aonde foram exibidos os objetos industriais. Houve o início do fetichismo dos objetos de mercado à medida, dizia, que o capitalismo invadia todos os aspectos da vida.

Cento e cinqüenta anos mais tarde, a nossa civilização - digo “nossa”, logo após a queda do muro de Berlim, nós somos incluídos numa mesma civilização - é caracterizada pela paixão com relação aos objetos. Isso destrói as tradições, as maneiras de viver. Tudo isso culmina seguidamente na transferência das pessoas, incríveis migrações forçadas pela procura de um trabalho, que levam as pessoas a interrogarem-se: “Como vou viver?” Perante esta angústia aparece um impulso vital de recuperar certas coisas que se manifestam como a consequência destas transferências forçadas. Tudo se devora e a droga entra por todos os lados.

- Na Argentina, temos uma grave situação de miséria com uma fratura entre as pessoas que trabalham e têm um salário e os que faltam mesmo o mais elementar. Este não é o mesmo quadro que você mencionou, mas, entre nós, a droga entra também como uma forma de esquecimento perante esta situação desesperadora.

- Esse é um problema muito complicado. Lembre-se que os ricos são os principais consumidores de droga! “Esquecer a miséria? ”… A América Latina, através de países como a Colômbia, fornece aos Estados Unidos, que são uma nação de consumidores. Como eu já dizia, os ricos foram os primeiros consumidores de droga. Em seguida, à medida que aumenta a produção de droga, produz-se um excedente, que consomem os pobres que tentam viver com o resto da venda. É certo que os pobres também se prostituem, entram na delinquência e fazem o comércio de droga, mas o esquecimento… é outra coisa… A droga toca desigualmente de acordo com a riqueza. Por exemplo, a penetração da cocaína como droga do desempenho encontra-se nas camadas mais elevadas da sociedade. O crack, em contrapartida, é a droga dos mais pobres entre os mais pobres.


Gozo

- Pode-se dizer, doutor, que a droga é uma forma de hedonismo?

- A droga é uma maneira de morrer! E de morrer em puro êxtase! Neste sentido, é um hedonismo absoluto. Mas a droga revela também algo de muito profundo: é ela que tenta fazer-nos crer que se pode construir uma sociedade com base no hedonismo. Isso é falso!

Uma sociedade - sem isso, ela não pode sobreviver - deve sustentar-se em outras coisas que sobre o prazer como princípio. Freud viu em 1920 qual prazer – na verdade que princípio - abre a porta a um além permanente, no qual ele procura sempre mais que o nosso prazer. E o que encontramos então? Encontramos qualquer coisa que Jacques Lacan pegou emprestado do vocabulário francês clássico, Ia jouissance (o gozo). O gozo é característico por ser ao mesmo tempo do prazer, mas de ir além dele. Começa-se por consumir ligeiramente cocaína “para o prazer”, seguidamente para ficar um pouco “alto”, e finalmente é impossível parar.

O que revela a droga de maneira impressionante, é que somos globalmente uma sociedade de adição!

É por isso que o trabalho, por exemplo, torna-se um vício por diversas razões. Para progredir, porque este é um bem para toda a família, porque tem-se ideias brilhantes, etc. E é desta forma que transforma-se numworkaholic (viciado pelo trabalho)! Trabalha-se cada vez mais e, se é japonês, acaba por morrer no trabalho. Numa palavra, tudo se torna uma adição e o corpo máquina – do qual se tenta dizer que é pleno de promessas e que se gastaram as peças originais, nós entraremos com as peças de reposição – não funcionará jamais como uma máquina. De modo algum!

O que este corpo quer é gozar! E gozar cada vez mais! Para cada um, passou a ser difícil saber quando parar. Estamos numa civilização que perdeu a formula para saber qual momento de parar. Entramos numa corrida louca contra a dependência. Estamos, com efeito, em guerra contra a droga, como dizem os norte-americanos, mas é também uma guerra contra muitas outras coisas.


Loucura da proibição – erro da permissividade

- Por exemplo?

- Veja, algo foi perdido. Fundamentalmente. E precisamente, a função da psicanálise, depois que Freud a criou, é recordar-nos que o prazer leva-nos a um além. Cada um deve inventar as suas próprias regulações para manter o gozo nos limites da vida. Isto não significa uma proibição. A proibição é uma forma brutal de regulamento. Mas muitas pessoas não creem demasiado nisso, porque eles já não têm mais muita proibição possível. Isto é algo ainda mais complicado. A proibição, por si só, pode conduzir a uma sociedade enlouquecida pela interdição, como esteve durante o período vitoriano, no final do século 19. O meio termo seria não cair na loucura da proibição nem no erro da permissividade convertida, ela também, numa espécie de loucura por si só.

- A complicação aparece, Doutor, assim que vemos os resultados catastróficos da sociedade de proibição...

- Considero, como outros, que a sociedade vitoriana conduziu-nos a Primeira Guerra Mundial. Este talho liberou as pulsões reprimidas por esta que também foi chamada de “a moral vitoriana”. Nestes anos, pôde-se observar que existia uma relação entre estes códigos estritos e o desencadeamento mortal de que falei.

Penso que nos dias de hoje, devemos ajudar os que são tomados nesta problemática que se refere a todos. Devemos encontrar os meios para controlar um laço social que permita preservar as relações humanas dignas deste nome. Certamente, não será através das ideologias do corpo máquina que poderemos nos libertar dos problemas que amenizam as drogas sob todas as formas.

- Você fez menção recentemente a Jacques Lacan. Foi o vosso analista, não é? Uma experiência muito importante…

- De fato. Foi apaixonante para mim. Inacreditável! Eu era um jovem atravessado por problemas de sua geração. Isso começou em 1967, um ano antes de Maio de 68. Eu frequentava o curso do Althusser que falava da reinvenção da psicanálise por Lacan, usando de uma linguagem contemporânea que permitiria compreender o ponto da civilização ou dos seres. Eu não ousava aproximar de Lacan. Mas, finalmente, o fiz, e ele aceitou tomar-me em análise. E isso se prolongou até sua morte, em 1981. Certamente, a postura foi alterando ao longo dos anos, mas, com efeito, a experiência desta análise foi algo de apaixonante, porque ele implicava simultaneamente o seu conhecimento e o entendimento do mundo. É desta forma que passei a encarar a psicanálise.


Pai! Porque me abandonou? 



- A propósito das relações, Doutor, como veem, hoje as relações pai-filho? As crianças não admiram mais os seus pais. Parece-me que este conceito está perdido ou, que em todos os casos, ele é notavelmente alterado.

- Diria que a relação filho-pai é um mistério a mais. Os pais depreciados?…

Vejam, vem das tradições e dos costumes que evitaram isso. A tradição judaica da abordagem, mas também a cultura chinesa, entraram na modernidade. Nestas tradições, respeita-se os pais com marcas mais fortes que na tradição católica. Nesta tradição, o pai é sempre suspeito - se posso permitir-me empregar esta palavra - de ser um pai adotivo. Qualquer pai está ligeiramente como José. Na história de Cristo, temos as seguintes palavras: “Deixem-os vir à mim! ” que se refere às famílias que se separaram das suas crianças para converterem-se em apóstolos. Os que entravam nas ordens monásticas eram extraídos de sua família. Mediante o qual, no catolicismo, existe um desvio mais acentuado que nas outras tradições entre o pai e o Nome do Pai.

- O mesmo acontece com os protestantes?

- Protestantes não têm a mesma posição que os católicos. Eles têm uma concepção diferente de Deus.

- Penso nos filmes de Bergman, onde aparecem cada vez mais pastores que são terríveis com suas crianças.

- Sim, é uma relação terrível que Bergman soube transmitir. Quase próximo de sua morte, ele teve a necessidade de colocar toda sua arte e todo seu talento para amaciar acontecimentos da sua infância; essa presença imponente de um “Deus maldoso” que aparece tanto nos seus filmes… As suas simpatias da juventude pelo nazismo vêm sem dúvida de lá.

As tradições, por conseguinte, mantêm-se mesmo na modernidade, mas o que perturba realmente esta relação, é a ciência. Por exemplo, quando são as mães quem escolhem o pai que querem para a sua criança! Ou quando desejam, graças à ciência, que ele não tenha um pai conhecido. E também as ficções legais ou dispositivos cada vez mais complicados que permitem, pela fecundação assistida, ter vários pais. Toma-se o óvulo de uma mulher, e implanta-o no ventre de outra… Tudo se complica e nada mais é certo. No passado, podia-se dizer que mãe era só uma e qual pai era responsável. Bem, hoje em dia este não é mais o caso. Consequentemente, a relação pai-filho torna-se cada vez mais uma ficção legal, uma relação cada vez mais tênue.

- Como acha que isso afeta ou complica a vida dos jovens?

- Essa não é uma questão apenas dos jovens, os pais também são afetados! Isso complica as coisas para todo mundo, porque é extremamente difícil saber ou situar-se. Os pais pensavam saber e conhecer o seu papel de pais em conjunto, agora, não compreendem mais qual atitude adotar. Eles não podem mais ser os pais terríveis e autoritários de outrora. Esta autoridade não tem mais lugar. Por isso é imperioso encontrar a maneira de serem pais, porque este papel pode reduzir-se a uma relação legal, fora de qualquer tradição. Isso dito, ainda há um enigma que subsiste. Somente os laços genéticos e biológicos não permitem diminuir a questão de saber qual foi o desejo que originou a minha chegada neste mundo. Por que tem crianças? “Por que você quis, você, que diz ser o meu pai?” “O que esperava mim?” Diante do desamparo da juventude, pode-se dizer que depreciam os seus pais? Penso antes que eles não chegam mais a crer tão facilmente quanto antes no papel da paternidade. É necessário saber que o pai já não é mais o mestre da situação. É um escravo que trabalha. Como o resto da sociedade. Ele deve produzir, realizar as suas sessenta horas de trabalho por semana. Se ele é despedido do trabalho, ele não é mais nada. Há certamente ainda pais admiráveis, mas a maior parte perdeu a sua majestade.

Há também algo de trágico no apelo da juventude. Algo como: “Pai! Por que me abandonou?” Os jovens devem esclarecer-se com a sua sexualidade, com a droga, com o seu próprio corpo. Sobre o que podem se apoiar? Esta é uma pergunta muito angustiante para um jovem. Demandam-nos que não os abandonemos frente todas estas perguntas.

sábado, 10 de agosto de 2013

Saúde Mental


Saúde Mental

Por Rubem Alves


Fui convidado a fazer uma preleção sobre saúde mental. Os que me convidaram supuseram que eu, na qualidade de psicanalista, deveria ser um especialista no assunto. E eu também pensei. Tanto que aceitei. Mas foi só parar para pensar para me arrepender. Percebi que nada sabia. Eu me explico.
Comecei o meu pensamento fazendo uma lista das pessoas que, do meu ponto de vista, tiveram uma vida mental rica e excitante, pessoas cujos livros e obras são alimento para a minha alma. Nietzsche, Fernando Pessoa, van Gogh, Wittgenstein, Cecília Meireles, Maikóvski. E logo me assustei. Nietzsche ficou louco. Fernando Pessoa era dado à bebida. van Gogh se matou. Wittgenstein se alegrou ao saber que iria morrer em breve: não suportava mais viver com tanta angústia. Cecília Meireles sofria de uma suave depressão crônica. Maiakóvski suicidou.
Essas eram pessoas lúcidas e profundas que continuarão a ser pão para os vivos muito depois de nós termos sido completamente esquecidos.
Mas será que tinham saúde mental? Saúde mental, essa condição em que as idéias se comportam bem, sempre iguais, previsíveis, sem surpresas, obedientes ao comando do dever, todas as coisas nos seus lugares, como soldados em ordem unida, jamais permitindo que o corpo falte ao trabalho, ou que faça algo inesperado, nem é preciso dar uma volta ao mundo num barco a vela, basta fazer o que fez a Shirley Valentine (se ainda não viu, veja o filme!), ou ter um amor proibido ou, mais perigoso que tudo isso, que tenha a coragem de pensar o que nunca pensou. Pensar é coisa muito perigosa...
Não, saúde mental elas não tinham. Eram lúcidas demais para isso. Elas sabiam que o mundo é controlado pelos loucos e idiotas de gravata. Sendo donos do poder, os loucos passam a ser os protótipos da saúde mental. É claro que nenhuma mamãe consciente quererá que o seu filho seja como van Gogh ou Maiakóvski. O desejável é que seja executivo de grande empresa, na pior das hipóteses funcionário do Banco do Brasil ou da CPFL. Preferível ser elefante ou tartaruga a ser borboleta ou condor. Claro que nenhum dos nomes que citei sobreviveria aos testes psicológicos a que teria de se submeter se fosse pedir emprego. Mas nunca ouvi falar de político que tivesse stress ou depressão, com excessão do Suplicy. Andam sempre fortes e certos de si mesmos, em passeatas pelas ruas da cidade, distribuindo sorrisos e certezas.
Sinto que meus pensamentos podem parecer pensamentos de louco e por isso apresso-me aos devidos esclarecimentos.
Nós somos muito parecidos com computadores. O funcionamento dos computadores, como todo mundo sabe, requer a interação de duas partes. Uma delas se chama hardware, literalmente coisa dura e a outra se denomina software, coisa mole. A hardware é constituída por todas as coisas sólidas com que o aparelho é feito. A software é constituída por entidades espirituais - símbolos, que formam os programas e são gravados nos disquetes.
Nós também temos um hardware e um software. O hardware são os nervos, o cérebro, os neurônios, tudo aquilo que compõe o sistema nervoso. O software é constituído por uma série de programas que ficam gravados na memória. Do mesmo jeito como nos computadores, o que fica na memória são símbolos, entidades levíssimas, dir-se-ia mesmo espirituais, sendo que o programa mais importante é linguagem.
Um computador pode enlouquecer por defeitos no hardware ou por defeitos no software. Nós também. Quando o nosso hardware fica louco há que se chamar psiquiatras e neurologistas, que virão com suas poções químicas e bisturis consertar o que se estragou. Quando o problema está no software, entretanto, poções e bisturis não funcionam. Não se conserta um programa com chave de fenda. Porque o software é feito de símbolos, somente símbolos podem entrar dentro dele. Assim, para se lidar com o software há que se fazer uso de símbolos. Por isso, quem trata das perturbações do software humano nunca se vale de recursos físicos para tal. Suas ferramentas são palavras, e eles podem ser poetas, humoristas, palhaços, escritores, gurus, amigos e até mesmo psicanalistas.
Acontece, entretanto, que esse computador que é o corpo humano tem uma peculiaridade que o diferencia dos outros: o seu hardware, o corpo, é sensível às coisas que o seu software produz. Pois não é isso que acontece conosco? Ouvimos uma música e choramos. Lemos os poemas eróticos do Drummond e o corpo fica excitado.
Imagine um aparelho de som. Imagine que o toca-discos e acessórios, o software, tenha a capacidade de ouvir a música que ele toca, e de se comover. Imagine mais, que a beleza é tão grande que o hardware não a comporta, e se arrebenta de emoção! Pois foi isso que aconteceu com aquelas pessoas que citei, no princípio: a música que saía do seu software era tão bonita que o seu hardware não suportou.
A beleza pode fazer mal à saúde mental. Sábias, portanto, são as empresas estatais, que têm retratos dos governadores e presidentes espalhados por todos os lados: eles estão lá para exorcizar a beleza e para produzir o suave estado de insensibilidade necessário ao bom trabalho.
Dadas essas reflexões científicas sobre a saúde mental, vai aqui uma receita que, se seguida à risca, garantirá que ninguém será afetado pelas perturbações que afetaram os senhores que citei no início, evitando assim o triste fim que tiveram.
Opte por um software modesto. Evite as coisas belas e comoventes. Cuidado com a música. Brahms e Mahler são especialmente perigosos. Já o roque pode ser tomado à vontade, sem contra indicações. Quanto às leituras, evite aquelas que fazem pensar. Há uma vasta literatura especializada em impedir o pensamento. Se há livros do Dr. Lair Ribeiro, por que arriscar-se a ler Saramago? Os jornais têm o mesmo efeito. Devem ser lidos diariamente. Como eles publicam diariamente sempre a mesma coisa com nomes e caras diferentes, fica garantido que o nosso software pensará sempre coisas iguais. A saúde mental é um estômago que entra em convulsão sempre que lhe é servido um prato diferente. Por isso que as pessoas de boa saúde mental têm sempre as mesmas idéias. Essa cotidiana ingestão do banal é condição necessária para a produção da dormência da inteligência ligada à saúde mental. E, aos domingos, não se esqueca do Sílvio Santos e do Gugu Liberato.
Seguindo esta receita você terá uma vida tranquila, embora banal. Mas como você cultivou a insensibilidade, você não perceberá o quão banal ela é. E, ao invés de ter o fim que tiveram os senhores que mencionei, você se aposentará para, então, realizar os seus sonhos. Infelizmente, entretanto, quando chegar tal momento, você já não mais saberá como eles eram.
(Provavelmente escrito em 1994)

Boa tarde! Estamos a partir de hoje iniciando um trabalho nesta página com intuito de levar discussões, inquietações, falas, conversas que serão pensadas a luz da psicanálise. Assim como publicações de textos, artigos, páginas e afins que enriqueçam nosso cotidiano como psicanalistas, estudantes e curiosos! Sejam todos bem vindos e tragam suas contribuições para este espaço!